quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Gratidao

 Por do sol em Zanzibar --alegria

Quero comecar esta despedida dizendo que sou grato.

Por mil motivos. Por exemplo, ter tido a oportunidade de poder, mais uma vez, exceder as fronteiras. Esta viagem e fruto de muito suor, o que imagino que ninguem vai negar. Mas tambem contou com todo o tipo de sorte de que nao posso me esquecer na hora de agradecer.

Sou grato tambem pela companhia dos amigos Chico e Onur. Quando nao estavamos discutindo, animados pela cerveja e as vezes insolentes uns com os outros, fomos otimos companheiros para tantas adversidades. Tenho certeza de que, nao fosse por esses dois, boa parte dos empecilhos da viagem teriam se transformado em tortura.

Agradeco os leitores. Quase 2.500 visitas significam muito para mim. Me deixam ate preocupado --talvez eu devesse ter escolhido melhor as palavras, as imagens, talvez devesse ter tido em mente que tudo isso pode um dia depor contra mim. Mas sei que nao vai. E digo obrigado a quem me acompanhou nesta jornada. Que saibam que ler os comentarios aqui, ou recebe-los por e-mail, certamente tornou as coisas mais faceis para mim.

Agora, a Tanzania. O que agradecer? Primeiro as adversidades, pelo que ensinaram. Pela casca que criaram em mim. Onibus lotado, comida intragavel, banheiro sem privada, blecaute diario, albergue sem agua, acidente de transito, barco sem sombra, trem inoperante, populacao indocil. A metafora ideal sao as botas curtas do Bras Cubas --quando eu descalca-las, meus pes vao respirar, aliviados. O que me traz uma gratidao extra: a de ter a imensa sorte de a minha vida ser outra, de ter nascido brasileiro, em classe media, de ter podido estudar. No fim, por mais cruel que seja, a pobreza nos serve de espelho as avessas.

Tudo isso sao amenidades, voces vao me dizer. De fato. Como o Onur bem disse, vamos nos esquecer de todas as coisas ruins que vivemos na Tanzania e nos concentrar nas boas, no futuro.

Se bem que --talvez nem tenhamos de esperar o futuro. Ja me doi bastante pensar em nos tres desembarcando em Zanzibar, perdidos, embaixo de um sol cruel. Em nos tres tentando descobrir de que cerveja tanzaniana gostamos mais. Navegando o Indico, explorando a savana, vendo o pico nevado do Kilimanjaro ao longe. Ruinas islamicas em Kilwa, e risadas abafadas em uma pocilga de Arusha enquanto o Onur faz imitacoes.

Acordar de madrugada para ir ao banheiro e ter medo de sair da barraca --e se la fora eu encontrar um babuino? Quase dormindo, eu fantasiava --e se o macaco sabio vier ate mim com alguma mensagem? E se um chimpanze, no Gombe, olhar no fundo dos meus olhos e eu, de repente, entender tudo?

Tudo o que?

Nao sei. Isso que me faz viajar. Essa felicidade descontrolada, essa ansia. Essa vontade de conhecer mais e mais e mais, de nao parar por aqui.

Mas e claro --nao vou parar por aqui. A viagem pela Africa terminou. Mas tenho certeza: ainda estou no comeco do meu caminho pelo mundo.

Obrigado por tudo, obrigado a todos.
 
Frango vermelho; nham nham

Dar es Salaam vista da balsa para Zanzibar

Portas de Zanzibar: protegidas contra elefantes imaginarios

Esse azul desconhecido do mar zanzibarenho

Ruinas islamicas vistas de um barco a vela, no Indico

Mesquitas milenares, e eu sorrio

Chico na ilha de Kilwa

Onur fotografa um elefante

Girafa, a queridinha dos comentarios no meu blog

Zebra gravida, no Serengueti

Saudades zero das estradas tanzanianas

Comida local tanzaniana: nota minima

Pouso em pista de terra, em Kigoma

Barco para Gombe; colorido, mas quase afundando

Ferdinand, macho-alfa, nao gostou de mim

Banhistas em Ujiji, cidade de Livingstone





Ruinas do forte alemao em Bagamoyo

Significados

 Cansaco

A contagem regressiva da viagem esta esta acelerada. Continuo em Dar es Salaam. Confesso que, agora, aguardando a partida com um pouco de impaciencia.

Em primeiro lugar, porque nao posso sair da cidade. Seria arriscado demais, em um pais em que os onibus demoram dias --quando nao quebram. Como ja estive por aqui em outras ocasioes, geralmente em transito, nao sobrou muito para me encantar.

Ha um "segundo lugar", tambem. Ele se chama "cansaco". Chama-se "eu ja virei o mapa deste pais de cabeca para baixo", ou "estive em lugares onde o turismo quase nunca chega", ou "nada mais me interessa a ponto de eu me dispor a me deslocar".

Nao e segredo que esta nao foi uma viagem facil. Provavelmente as dificuldades trabalharam a meu favor, mas sobre isso podemos refletir mais tarde, no ultimo relato. Por ora, se quiserem pensar em mim nas proximas horas, me imaginem andando despreocupado por Dar es Salaam com um livro embaixo do braco.

Me imaginem em lotacoes com pessoas escorrendo pela janela, de tao cheias; ou me tenham em mente enquanto caminho pelos mercados tradicionais, pelas ruas desertas.

Gostaria de relatar aqui historias incriveis, falar da mistura entre Africa, India e Arabia aqui em Dar es Salaam. Narrar aventuras, descrever monumentos. Mas preciso confessar: agora, "viagem" significa "relaxar".

Passei a manha no Jardim Botanico ignorando as arvores, concentrado nos macaquinhos de virilha colorida. Vou caminhar a tarde por ai --ainda nao sei onde.

Mas sei onde vou estar, nos proximos dias: em casa.

 Fome

 Diversao

Equilibrio

Viril

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Os babuinos voluntariosos

  
 Um babuino mostra a bunda para a fotografia

Gombe ficou para tras, mas nao consigo parar de pensar em babuinos. Talvez por desconfiar de que ainda haja alguma coisa para entender. Assim, dedico este relato a esses animais extraordinarios. Como introducao, uma citacao do primatologo John Mitani: "Voce nao pode olhar um grande primata de perto e deixar de sentir alguma coisa muito especial".

 
Ternura

 
Desprezo

 
 Sabedoria

 
Receio

 
Adrenalina

 
 Carinho

 
 Espreita

Misterio 

domingo, 29 de janeiro de 2012

Germanico

Nao entre; quarto em risco dentro do forte alemao

Uma lotacao, chamada aqui de dala-dala, me trouxe de Dar es Salaam para a nortenha Bagamoyo. Um pouco mais de uma hora dentro de um onibus lotado, com gente escorrendo janela afora. De tao acostumado com a cena, a viagem me foi placida.

Ha alguma coincidencia neste trecho da viagem, e eu poderia ate aproveitar para fingir que foi tudo planejado. Mas, pelo contrario --nem pensava em vir a Bagamoyo. Que surpresa a minha, entao, chegar aqui e descobrir que foi nesta cidade que os grandes exploradores europeus iniciaram suas jornadas rumo ao coracao da Africa (Burton, Speke, Stanley, Livingstone). Isso dias apos ter estado embaixo da mangueira em que Stanley e Livingstone se encontraram, no outro extremo do pais.

Livingstone e um misterio, para mim. Nao entendo muito bem por que os tanzanianos sao tao obcecados por ele. Esta certo, a historia narra um personagem benevolente e abolicionista. Mas europeu! Por que, entao, pregar uma placa na porta de uma igrejinha na costa do oceano Indico celebrando: 'Por essa porta David Livingstone passou'?

Quanto mais viajo na Africa, mais admiro Livinstone e sua trupe. Se e dificil explorar esse continente hoje, imagine no seculo 19.

Esqueca as estrada (err, quais?), a internet (hm) e a populacao que, male-male, fala ingles (no primeiro dia, achei que o taxista estava falando 'Lenin', mas era 'raining' --'o Lenin estragou as estradas!').

Esqueca, tambem, o tratamento e a prevencao para a maioria das doencas que, ainda hoje, me assustam com possibilidades fatais (colera, malaria, doenca do sono, hepatite). Adicione a tudo isso o inescrutavel: ninguem realmente sabe o que se esconde por tras dos rios caudalosos, das florestas entrelacadas, das montanhas escarpadas.

Uau.

E eu me achando aventureiro por estar, hoje, em Bagamoyo, a capital da colonizacao alema na Tanzania no seculo 19. Caminho por entre fortes germanicos e me sinto um heroi, em uma cidade costeira em que ate mesmo encontrar comida e um desafio. Mas serei humilde: Dr. Livingstone deve ter tido mais problemas na jornada dele. O maior deles, a saude, tirou-lhe a vida.

Por essa porta ele passou, por essa porta eu passei. Resta saber para onde vamos, agora.

Em risco? Imagina. Nos, tanzanianos, cuidamos tao bem do patrimonio historico!

Corte do palacio alemao, em Bagamoyo

Relax na fortaleza germanica

Por essa porta David Livingstone passou; em tempo: eu tambem passei

Cemiterio cristao em Bagamoyo

Estatua carcomida dentro da torre de Livingstone

Criancas diante da igreja, apos a reza dominical

Gelo nao bacterial --ufa; mas banana feita em casa? Do tipo --manipulacao genetica?

Barco na praia de Bagamoyo

sábado, 28 de janeiro de 2012

Despedidas

Entre macacos e babuinos, me esqueci de um recado: Chico, meu companheiro de viagem, ja deixou a Tanzania. Nos separamos no dia 25, quando fui a Kigoma. Neste momento, ele deve estar tomando ayran em Istambul. Inutil escrever aqui como e estranho estar em Dar es Salaam sem ele e sem o Onur.

Presumindo

As ruas umidas de Ujiji

Engracado justamente eu gostar tanto de viagens.

Viajar envolve uma coisa que me machuca: mudancas. Nada como modificar o "status quo", as coisas como elas estao, para me deixar inquieto. Quanto a isso, o Chico diria que sou reacionario --entre garrafas de cerveja, discutimos essa questao na nao-saudosa Dodoma.

Tenho dificuldade de aceitar que as coisas se transformam. Dai minha mania de me agarrar a um trecho do livro "O Leopardo", em que o jovem principe siciliano Tancredi diz: "Se queremos que as coisas fiquem como estao, as coisas devem mudar".

Enfim.

A perspectiva de passar mais dois dias em Kigoma, conforme planejado no meu tiquete de aviao, me assustou. A cidade, sem restaurantes ou qualquer atrativo, esticada em estradas longas castigadas pelo sol, nao me cativou. Passada a euforia de Gombe, um dilema --o que fazer ali?

A isso somava-se o terror de, por uma hora, nao conseguir sacar dinheiro no banco. A maquina dizia que minha operacao tinha sido recusada. Achei que meu cartao estivesse bloqueado. Sentei no chao, cobri a cabeca com as maos e fiquei ali. Nao conseguia nem raciocinar. No bolso, menos de R$ 50.

Por fim tudo se resolveu (a maquina estava quebrada) e, ja com dinheiro no bolso, resolvi a outra parte do problema. Com algum esforco, consegui trocar meu bilhete sem pagar multa. Estou, portanto, de volta a Dar es Salaam. Alivio.

Entre a mudanca do cronograma e o voo, porem, aproveitei para conhecer o simpatico vilarejo de Ujiji, ao sul de Kigoma. Essa vila foi por seculos um importante entreposto comercial, como parte essencial da rota rumo aos portos de Zanzibar.

Nao consigo evitar a comparacao entre Ujiji e a espanhola Catarina, esposa do rei ingles Henrique VIII. Assim como Catarina foi ofuscada pelos charmes da rival Ana Bolena, Ujiji perdeu importancia com a construcao da estacao de trem de Kigoma. Ambas, Catarina e Ujiji, murcharam e perderam a coroa.

Pois bem. Mais importante do que tudo isso e que, em 1871, encontraram-se em Ujiji os exploradores Stanley e Livingstone. Ja narrei essa historia aqui --"Dr. Livingstone, I presume?".

Sentado embaixo de uma das mangueiras nascidas daquela em que se deu o encontro, pensei em chegadas e em despedidas. E, agora que a viagem esta na contagem regressiva, pensei --por que nao?-- em retornos.

 Encontro verde e rosa entre Stanley e Livingstone

 Embaixo da mangueira "filha" daquela em que os exploradores se encontraram

 Criancas saidas do lago Tanganika, em Ujiji

Bode do pelo brilhante, nas ruas de Ujiji

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Felicidade

Ferdinand, macho-alfa, minutos antes de me atacar

Que alguem me apresente uma definicao de felicidade que nao envolva andar pela praia ao lado de babuinos --vou achar inadequado.

Tambem vou estranhar caso essa visao feliz apresentada a mim nao inclua passar a manha embrenhado na selva, entre chimpanzes.

Sou egocentrico, mesmo, e hoje vai ser dificil entender como seriam as coisas caso eu tivesse sucumbido as artimanhas do transporte publico tanzaniano e deixado de visitar o parque Gombe.

Pois bem. Impossibilitado pelas estradas inexistentes e pelos trilhos de trem varridos pela chuva, optei por passar por cima das planicies africanas, de aviao. Embarquei em Dar es Salaam, fiz escala no Lago Vitoria, ao norte, e pousei em Kigoma --a fronteira oeste da Tanzania.

Mal desci do aviao e ja estava em um taxi sacolejando, com pressa, rumo ao porto. Peguei o barco minutos antes de ele partir.

Sentei-me na beirada do bote, apavorado com a ideia de que talvez naufragasse, e so entao respirei. Deixei ate um pensamento esperancoso tomar contar de mim --vou conseguir ir para Gombe, apesar de tantos pesares?

Consegui.

Tres horas depois, desembarquei no pier da floresta remota em que, em 1960, Jane Goodall iniciou suas pesquisas sobre chimpanzes.

Nao vou ter tempo para escrever, aqui, sobre a sra. Goodall e como essa senhora esta entre as pessoas que mais admiro no mundo. Basta estar no parque, mesmo em 2012, para ser tomado por um sentimento que beira o amor --como uma garota inglesa pode viver por decadas sozinha, aqui, dormindo pelos dez primeiros anos em um acampamento?

As observacoes dela refletem o esforco e a coragem empenhados. Foi Goodall que lancou as bases da observacao disciplinada desses animais na natureza, fazendo descobertas das mais essenciais. Por exemplo --a de que chimpanzes usam ferramentas. Ate entao, pensava-se que essa fosse uma prerrogativa dos seres humanos. Entao Goodall viu macacos enfiando uma haste de grama dentro de um cupinzeiro, usando-a para pescar insetos.

A biologia e a antropologia tremeram.

***

Passei dois dias e duas noites no parque. Era o unico turista. O livro de chegada, com assinaturas e datas, mostra que as visitas sao mesmo raras.

Me instalei no parque, mergulhei no Lago Tanganika (o segundo mais profundo do mundo, alem do primeiro em comprimento), observei as hordas de babuinos que marcham pela regiao. Tudo quieto, tudo lindo, tudo como eu quis que fosse desde que planejei essa viagem.

Na selva, o guia do parque me levou para o meio de um bando de chimpanzes. O macho-alfa, Ferdinand, me atacou duas vezes. Um chimpanze muito mais forte do que eu correndo em minha direcao. Um galho bate na minha cabeca e grito "ai!". O guia me empurra para longe, enquanto um pesquisador se joga no chao para se proteger.

O evento me deixa tremulo por quase uma hora. Mas feliz como nao estou ha muito tempo. Eu e Ferdinand nos conhecemos, de certa maneira. Ele e filho de Fifi, que por sua vez nasceu de Flo. Me sinto quase
intimo desta familia --eles estao entre os personagens principais de "Na Sombra do Homem", o livro que da nome a este blog.

Babuinos e chimpanzes olhando nos meus olhos. Fugindo de mim, me atacando, tentando roubar minha roupa nas margens do lago --ou apenas me olhando. Eu olho de volta.

Sei que cheguei a algum lugar.

Lago Tanganika; estava de olho na maquina fotografica, para os babuinos nao me roubarem 

 Embarque tumultuado no barco pelo lago Tanganika

 Sombra para que, ao meio dia, na Africa?

Outro barco rumo ao norte do lago

 Criancas provocam o "mzungu" (branco) no barco

Pier do parque Gombe, visto de dentro da floresta

  O assustador Ferdinand em seu orgulho de macho

"Tira a foto logo, estou morrendo de medo. Grato"

A mil metros de altura, apos escalar o Jane's Peak

Babuinos de dedos delicados

Qualquer maneira de amor vale a pena